quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Carta à Minha Mãe-Clevane Pessoa

Minha mãe e eu tínhamos apenas dezesseis anos de diferença.Casou-se cedo, teve seis filhos- o caçula com síndrome de Down.Em 04 de dezembro, faria 82 anos, mas nos deixou em 2007.Não se passa uma dia sem que eu recorde aquele rosto amado, onde a lágrima teimava em escapar -padecia de hipersensibilidade, de generosidade- mas o sorriso era constante.Parteira, dançarina, sapateadora, declamadora, nadadora, mãe diferente, que brincava conosco para aproveitar sua infância eterna.
Certa feita, Lima Coelho pediu uma carta , para seu blog .Escrevi o texto abaixo .Ela achava que eu era uma bela princesa- o que devo ter acreditado, pois jamais tive o tal complexo de inferioridade  -de cousa alguma....


 Esse desenho pertence à série de minha mostra GRAAL Feminino Plural, fiz quando ela se foi, num desastre, plena de vida...Desmanchei-lhe o fio da vida, depois de reconstruir seu rosto de jovem, as mamas se distanciando, a vida e esvaiando, mas sempre VIVA em minha memória.
Clevane Pessoa

CARTA À MINHA MÃE



Pois é, dona Terê, você dizia que sua família era no céu, porque o escrivão esqueceu de colocar seu sobrenome em seu registro civil. Das famílias Leite, Câmara e Araújo, do Rio Grande do Norte, era apenas Terezinha do Menino Jesus.A santinha de Lisieux. Quando se casou com meu pai ganhou um Silva. Novamente errado, pois o sobrenome paterno dele era Pessoa da Silva e deveria ser "da Silva Pessoa"...(Não havia computador, neh?) Esse, foi passado aos filhos.Todos "Pessoa de Araújo". Nesse caso, o meu,de primogênita, mais um registro errado. Teria de ser "de Araújo Pessoa".Para os meus irmãos não ficarem diferentes,seguiu-se igual.
Pois é, estou aqui  escrevendo para você, para contar que se até hoje S. José de Mipibu,onde nasci, no Rio Grande do Norte, era apenas um nome desconhecido aqui em Minas, para onde viemos quando eu tinha seis anos,agora, com a Internet,passou a ser algo bem próximo.
Pesquisei pelo Google e passeei virtualmente, pelo berço-natal (você ia adorar "Tia Internet",como diz meu amigo, o poeta Kiko Consulin). Pois bem, há cerca de quinze dias,recebi a carta de uma pesquisadora chamada Francinete Moura. Ela trabalha com a prefeita (a primeira mulher nesse cargo, por lá). S.José de Mipibu vai completar 160 anos de emancipação. Então, farão um livro, com 160 pessoas destacadas que ali nasceram. Pasma,vi que dessa vez, a Internet, devolvia-me à cidade.
E,para falar a verdade, estou querendo ir lá conhecê-la. Quem sabe nas festividades?
Sabe o que mais? Você tinha dezesseis anos quando nasci,casada aos quinze.Menina tendo menina.Vovô Luiz Máximo de Araújo e vovó Teófila Teonila Câmara de Araújo estavam morando em S.José. E você foi para a mágica do parir, para o regaço familiar.
Sempre me contou que nem sabia direito como uma criança nascia. Que estavam brincando de jogar cartas, quando as dores começaram. Você pensou que estava com dor de barriga, prosaica e inocentemente, até que a serpente de fogo envolveu-se em seus rins e as costas  doeram como se tivessem sido espancadas.
A parteira foi chamada em Natal, estava dentro de um cinema. Anunciado o pedido, por microfone, D.Donzinha saiu correndo. Meu tio Jandy, seu mano mais velho,estava no recinto e saiu correndo. Foram para S.José de Mipibu.
Dizem que você estava sob as cobertas, cabeça coberta. Que ele entrou e ajudou a trazer-me à luz (você disse que julgou tratar-se de um médico),enquanto  meu pai, no quintal,rezava e prometia aos santos que nunca mais sua menina Terezinha iria passar tamanho suplício. Passou. Mais cinco vezes e mesmo a mulher madura tinha estreitamento falta de dilatação. Mesmo assim você teve o primeiro filho homem pesando cinco quilos, medindo 51 cm...
    Já eu... Nasci calva, magrinha, com as veias da cabeça aparentes. Parece que você vomitara a gravidez inteira. Nada bonita, você me contou,embora papai me dissesse que eu era muito linda, com olhos imensos e que ja nascera olhando para ele, quando, correndo para o quarto ao ouvir o choro,pegou-me ao colo. Acho que só matou a vontade de ter nos braços um bebê rechonchudo, quando Cleone nasceu. Você disse que parecia uma "paquinha".
Também foi a única vez que não me achou uma princesa. Corujíssima, dizia-me quando eu era magrinha: é linda, tem pernas roliças e proporcionais ao corpo, que vão ficar divinas.Tudo que eu vestia, ficava ótimo,a seus olhos. Ninguém mais elegante. Cresci sem nenhum sentimento de inferioridade. Era a rainha do elogio, a companheira mais doce, mais sapeca.
Lembra quando você me disse que adorou eu ser uma garotinha porque então poderia brincar de boneca novamente? Comigo e com meus brinquedos.
Segundo consta, nasci entre luzes e orações.O prefeito,o padre, acenderam luzes, as beatas foram à igreja rezar para uma delivrance mais rápida, pois parto de primípara arrasta-se, ainda mais de menina (a menina que você era e sempre foi)
Deixava o arroz queimar,esquecido no fogão, enquanto, no chão, as atividades lúdicas ocorriam. Papai achava muita graça. Dizia que adorava arroz "pegadinho"... Que sorte, que maridão, hem?
Você povoou meu imaginário. Ensinou-me a dançar, a escrever aos três anos, a ler também com essa idade. Pedagoga nata. Reinventava metodologias.
Maga, no fogão. Multiplicava tudo indefinidamente. Podíamos levar amigos, amores.E a comida sempre dava...Que mágica fazia? Vivia inventando bolos, doces.Dava festas. Linda. Papai, ciumento,vigiava. Por cinquenta anos.Ao mesmo tempo, fazia todas as vontades. Não proibia nada. Apaixonado até sua morte.
Poxa,mãe,como é que uma pessoa cheia de vida como você foi chamada assim, de sopetão,sem aviso prévio? Olha, ficamos muito mal sem sua energia. Lembra que nós a chamávamos para ir para casa? Se estava no mar, a cavalo, esquecia-se de tudo... Enquanto as outras mães chamavam os filhos, nós exortávamos nossa mãe eternamente adolescente:"Tá na hora de ir embora!"
Se você visse como briguei ao telefone com o policial que informava ao telefone: "O corpo está na estrada". Que corpo? Era você, minha mãe! Mas ao vê-la naquele caixão que a empresa de ônibus mandou, vi que não era você. Ah, não era não!Aquela imobilidade plena,nada tinha com sua vitalidade...
No velório, talvez estivesse sendo consolada da saudade, em algum hospital celeste. Em dado momento, deve ter-se levantado, disse que era enfermeira e foi ajudar aqueles outros de outros velórios que estavam chegando... Você nunca se furtou à relação de ajuda, fazendo curativos, partos, criando filhos alheios... Sei que você,agora, faz partos nas nuvens, dança com os anjos, penteia as anjinhas e serve algum café forte a S. Pedro...
Pois bem mãe,vou levar você comigo a S.José de Mipibu. Dentro do coração,"um lugar grande para se viver",dentro da alma,feita para amar e amar e amar.Como a sua.
          Um beijo, de sua princesa, que achavas bela:
          Clevane
Belo Horizonte,10.05.2005
(Clevane Pessoa de Araújo Lopes)
clevane@yahoo.com.br
asasdeborboleta16@gmail.com
www.clevanepessoa/blog


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